Na Trilha: O Fervilhante Caldeirão Criativo dos Anos 1970


Para quem é um veterano apreciador da música do cinema, este século 21 é um período contraditório. Nunca houve tantos fãs de film scores, nunca foram lançadas em CD ou download digital tantas trilhas sonoras originais, antigas e de novos filmes. Mas curiosamente, muito do que hoje se produz no gênero deriva de um período histórico onde a criatividade artística musical, em diversos estilos, atingiu níveis fantásticos. Naquela época, a música de cinema, em especial, beneficiou-se tanto das novas ideias musicais como da própria transformação que sofreu o cinema norte-americano, que deu origem a uma safra de filmes de grande apelo que inspirou os compositores a criarem trilhas sonoras memoráveis.

Falo, é claro, da década de 1970, período que considero o ponto alto da Silver Age da música de cinema. Certamente que a década anterior também é historicamente importante por marcar a entrada em cena de muitos compositores essenciais, bem como pelo afastamento que a música de cinema fez de sua forma mais tradicional, consagrada na Golden Age, rumo a novas e mais populares linguagens. Mas foi no fervilhante caldeirão criativo da década seguinte que todas as tendências que ganharam força em anos anteriores – o jazz, o rock, a música eletrônica e outras linguagens pop – floresceram paralelamente a um inesperado e potente renascimento da música orquestral patrocinado por grandes compositores da época, transformando aquele momento num dos mais ricos da música do cinema.

taxidriverCDNo início da década, raríssimos eram os grandes trabalhos do gênero que estavam no catálogo das gravadoras. Considerável parte das trilhas sonoras dos novos filmes não recebiam edições discográficas, exceto quando de compositores de grande apelo ou de quando o filme tinha uma linha francamente comercial, muitas vezes apresentando como trilha sonora coletâneas musicais. Mas em breve as coisas começariam a mudar, graças à série de regravações de scores históricos feitas por Charles Gerhardt, lançadas em LP pela RCA. Alguns poucos lendários compositores destes scores, ainda que afastados do mainstream, estavam ativos e volta e meia eram contratados para compor em filmes de jovens cineastas que os tinham como ídolos. Um deles era Brian De Palma, discípulo de Alfred Hitchcock que, reconhecendo a inestimável contribuição de Bernard Herrmann para a obra do “Mestre do Suspense”, utilizou o veterano compositor em seus filmes Sisters e Obsession.

Outro então jovem e sinbadgoldentalentoso cineasta, Martin Scorcese, ofereceu a Herrmann a oportunidade de compor aquele que seria seu último – e memorável – trabalho: a jazzística e sombria Taxi Driver. Outro grande compositor remanescente da Golden Age, Miklos Rozsa, apesar de aparentemente esquecido pela maioria dos cineastas da época, recebia oportunidades para criar trabalhos memoráveis, como The Golden Voyage of Sinbad e Time After Time. Rozsa ainda trabalhou até o início dos anos 1980, fase onde compôs a lírica Providence e Dead Men Don’t Wear Plaid, esta um nostálgico retorno do compositor ao tipo de partituras que compôs para clássicos do film noir. Já Alex North recebeu indicações ao Oscar® por Shanks e Bite the Bullet. North também à época compunha para a TV, em minisséries premiadas como QB VII, Rich Man, Poor Man e The Word.

5b23d250fca0cac8aea17010._AA240_.LOs grandes compositores da Silver Age eram mais ativos, alguns estando prestes a atingir seus maiores níveis de produtividade e qualidade. John Williams, que no final da década anterior migrara da televisão para a tela grande, apresentava uma produção eclética que abrangia a comédia, adaptações musicais (sendo a mais notória Fiddler on the Roof) e filmes catástrofe. Seu belíssimo score para o western The Cowboys lhe abriu caminho para caras produções de grande visibilidade como The Poseidon Adventure, The Towering Inferno, Earthquake, Jaws, Star Wars, Close Encounters of the Third kind e Superman The Movie. Seus premiados trabalhos do período, especialmente os três últimos citados, foram essenciais para o renascimento, em pleno domínio da música pop no cinema, da grandiosa trilha sonora orquestral.

omenCDJerry Goldsmith, que já nos anos 1960 fizera a transição da TV para o cinema, onde compôs partituras antológicas como Freud e Planet of The Apes, entrava em um dos períodos mais prolíficos de sua carreira. Esta fase, apesar de incluir dramas como Papillon e suspenses como The Other, era dominada por filmes de horror, sci-fi e de ação, gêneros que deram origem a muitas das mais cultuadas obras do compositor. Goldsmith, que tivera indicações prévias ao Oscar®, finalmente conquistou sua estatueta pelo antológico score de The Omen. Mesmo trilhas originais que ele compôs para filmes esquecíveis como The Cassandra Crossing eram ótimas, trazendo grandes faixas de ação como sua marca registrada. Capricorn One recebeu um tema de abertura que é, provavelmente, a mais empolgante faixa de ação escrita para uma cena… sem ação. Com uma produção que variava de três a seis scores por ano, até o final da década Goldsmith ainda entregou obras fantásticas como The Great Train Robbery, Alien e Star Trek The Motion Picture.

Elmer Bernstein, que na década anterior vivera uma fase importantíssima em sua carreira, com trabalhos marcantes como The Magnificent Seven, To Kill a Mockingbird e Hawaii, nos anos 1970 não teve muito destaque. Foi indicado ao Oscar® de Melhor Canção pelo filme Gold, e de resto nenhum filme de maior importância, seja em termos artísticos ou de bilheteria, trouxe sua música. Exceto pela surpresa do final da década National Lampoon’s Animal House, que apesar de ter originado um álbum que não trazia uma faixa sequer da trilha de Bernstein, fez do compositor um dos mais requisitados para compor em comédias dos anos 80.

magnumforceCDHenry Mancini, que nos anos 1960 participou de uma frutífera parceria com o diretor Blake Edwards, retomou esta colaboração em 1975 com The Return of the Pink Panther, que marcou também o reinício da famosa cinessérie e a volta do tema instrumental mais famoso do compositor. O argentino Lalo Schifrin, cujo nome à época era mais associado às trilhas de séries e filmes policiais ou de ação, como Mission: Impossible, Mannix e Bullitt, demonstrou grande criatividade em obras do gênero que o consagrou, como Dirty Harry, Magnum Force e Enter The Dragon (esta, a trilha definitiva dos filmes de artes marciais), bem como em projetos de linha clássica como The Four Musketeers.

Os principais compositores de cinema europeus da época, como Maurice Jarre, passaram a compor mais regularmente também nos EUA. Dentre eles Georges Delerue foi um dos mais bem sucedidos, tendo conquistado o Oscar® de 1979 de Melhor Trilha Sonora Original por A Little Romance. Também Ennio Morricone, tendo sido indicado ao Oscar® em 1978 por Days of Heaven, foi presença mais ativa nas produções Made in Hollywood. Nino Rota fincou sua bandeira no coração do grande cinema norte-americano com sua bela e melancólica partitura para The Godfather. Em meados da década, John Barry alternava trabalhos para a TV e o cinema. Apesar de não ter sido indicado nenhuma vez ao Oscar®, vários dos maiores sucessos de bilheteria do período, como King Kong, The Deep e Moonraker, trouxeram suas elegantes partituras.

sw_gonnaflynowParalelamente ao trabalho de grandes compositores dos anos 1940, 1950 e 1960, novos talentos surgiram com obras de grande criatividade. David Shire, que também compunha canções para a Broadway, criou para o cinema partituras de impressionante variedade, que iam do funk de The Taking of Pelham One Two Three, passando pelo blues noir de Farewell My Lovely, o som disco de Saturday Night Fever (a trilha-coletânea mais vendida da história, que trazia algumas faixas instrumentais de Shire) até o suspense clássico de The Hindenburg. John Morris, outro compositor com passagem pela Broadway, era o compositor preferido do diretor de comédias Mel Brooks e de seus colaboradores Gene Wilder e Marty Feldman. Bill Conti, um dos profissionais mais requisitados do período, entrou para o primeiro time dos compositores de Hollywood graças ao grande sucesso dos filmes Rocky, permitindo que musicasse sucessos de crítica como Harry & Tonto e An Unmarried Woman.

shaftDo lado mais pop, o grupo de rock progressivo alemão Tangerine Dream estabelecia, em discos e apresentações ao vivo, as bases da música eletrônica que transportaria para os cinemas a partir de 1977 com o filme Sorcerer. Já o Goblin forneceu scores para filmes dos mestres do terror Dario Argento (Suspiria) e George A. Romero (Dawn of The Dead). O diretor John Carpenter, com o antológico score eletrônico para o seu clássico de horror Halloween (1978) estabeleceu seu estilo inconfundível na música do cinema. Por sua vez, a onda dos filmes Blaxploitation, que teve seu auge na primeira metade da década, fez com que consagrados músicos e intérpretes da música negra como Isaac Hayes, James Bown, Curtis Mayfield e Marvin Gaye compusessem e interpretassem não apenas canções, mas também scores recheados de funk e soul. Hayes conquistou o Oscar® de Melhor Canção por seu antológico “Theme from Shaft”, que introduziu a característica guitarra wah wah nas trilhas sonoras. A onda disco detonada a partir do estrondoso sucesso de Saturday Night Fever em 1977, além de tornar o ritmo uma presença constante nas trilhas sonoras, inesperadamente aliou-se às partituras orquestrais. O produtor Meco Monardo lançou alguns álbuns com versões disco de grandes trilhas orquestrais como Star Wars, Close Encounters of the Third Kind, Superman The Movie e Star Trek The Motion Picture, levando assim as criações de Williams e Goldsmith para o público mais jovem.

Com este breve (e não exaustivo, muito mais compositores e obras poderiam ser citados) quadro dos anos 1970, fica fácil concluir que atualmente, como já dito, o que ouvimos é reflexo daquela época onde, graças a uma feliz e rara combinação de diversos fatores, a música de cinema atingiu seu auge. Dos compositores que dominaram a música de Hollywood nos anos 1970, apenas John Williams segue na ativa, secundado por colegas que se revelaram principalmente nos anos 1980 e início dos 1990. Grandes compositores já faleceram ou se aposentaram, e alguns novos talentos surgem trazendo poucos trabalhos de qualidade – a realidade é que raros dos scores que hoje são compostos fogem da mediocridade e do formulismo. Talvez, algum dia, um novo tsunami criativo como o que atingiu a música do cinema chegue novamente. Até lá, o jeito é lembrar (e ouvir), com um sorriso nos lábios, uma época que passou há mais de 40 anos.

Jorge Saldanha

 

2 comentários sobre “Na Trilha: O Fervilhante Caldeirão Criativo dos Anos 1970

  1. A impressão que passa é que o atual cenário das grandes produções hollywoodianas (remake, adaptação, remake, continuação, adaptação…) reflete no trabalho dos compositores: se muitos filmes tem conceitos ou tramas pífias, feitas no piloto automático, fica difícil tirar inspiração para a criação de composições mais marcantes.

    Mas esse não deve ser o único problema: a atual geração realmente não tá no mesmo nível do pessoal de 30 anos atrás…

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  2. Na minha opinião, o tema do Jerry Goldsmith para Star Trek: O Filme é melhor do que o do John Williams para Star Wars. Claro, o do Williams é mais icônico, mas acho o do Jerry mais bonito.

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