Na Trilha: A Música de BLADE RUNNER


Introdução

Blade Runner – O Caçador de Androides (1982) é um dos melhores e mais influentes filmes de ficção científica já produzidos. Baseado no excelente livro “Do Androids Dream of Electric Sheep”, de Philip K. Dick, o cineasta Ridley Scott criou sua versão cinematográfica como uma visão impressionante de um futuro próximo obscuro – o então ainda distante 2019. Apesar de parecer perturbadoramente sombrio na época do seu lançamento, o filme mostrou-se profético no modo como o mundo mudou, apesar de ainda não termos carros voadores e robôs com inteligência artificial em grande escala.

Deckard (Harrison Ford) é um Blade Runner aposentado – um caçador de “Replicantes” (androides criados pela Tyrell Corporation para serem “mais humanos que os próprios humanos”). Os Replicantes foram declarados ilegais na Terra, porém um grupo dos mais avançados, os Replicantes da série Nexus-6, sequestraram uma nave de transporte e voltaram de seu exílio. Deckard é forçado a voltar à ativa e seu trabalho é exterminá-los.

O que querem estes Replicantes? Simples: querem “mais vida”. Eles foram projetados para um tempo limitado de quatro anos e criados para servir como mão-de-obra escrava, contudo eles desejam viver como humanos. Liderados pelo carismático e inteligentíssimo Roy Batty (Rutger Hauer), os Replicantes buscam o confronto com seu criador, Eldon Tyrell (Joe Turkel), dono de uma das maiores corporações do planeta. Na ação que transcorre através de uma fantástica e futurística cidade de Los Angeles, em 2019, acompanhamos o desumano Blade Runner à medida que ele persegue os Replicantes renegados. As coisas ficam complicadas com o aparecimento de um novo Replicante criado por Tyrell como um “experimento”. Essa nova personagem, Rachael (Sean Young), foi dotada de lembranças e acredita ser humana, antes que ela descubra o que realmente é.

O Compositor

Blade Runner, o filme, é visualmente atordoante, com uma visão urbana que tem sido muito copiada, mas nunca aperfeiçoada, nem mesmo por sua tardia continuação, Blade Runner 2049. A atmosfera é encantadoramente enriquecida pela música do compositor grego Vangelis. Vangelis Papathanassiou (foto abaixo) gravou a trilha sonora de Blade Runner em seu Estúdio Nemo (Londres) em 1982. Lá também foram gravadas outras de suas trilhas para o cinema, incluindo “Chariots of Fire” (Carruagens de Fogo) com a qual ganhou um Oscar® em 1981. Vangelis trabalhava sobrepondo suas performances umas às outras em um gravador multifaixas (multitrack recorder), tocando virtualmente toda peça musical sozinho. Um dos principais responsáveis pela particularidade de seu som durante aquela época foi o Sintetizador Analógico Yamaha CS80, que pode ser ouvido em quase todas as faixas da trilha sonora de Blade Runner, e foi um dos primeiros sintetizadores a oferecer características de performance que permitiram um enorme grau de expressão musical. Nas mãos de Vangelis, ele certamente se tornou um impressionante veículo sonoro. No caso específico de Blade Runner, é a música emocional que parece dar vida ao mundo frio, duro e tecnológico representado na tela.

Blade Runner é o abandono do recurso às tradicionais trilhas de ficção científica de anos anteriores. Vangelis concentrou-se na atmosfera e emoção, evitando os “gemidos” e “balbucios” sonoros que geralmente acompanhavam os filmes antigos. A música também foi um esforço tecnológico, atraindo a força conjunta de uma bateria de sintetizadores e outros equipamentos, sendo tudo mixado em som quadrafônico para uma apresentação especial do filme no teatro Leicester Square Odeon. Durante o trabalho com a música de Blade Runner, e em outros projetos cinematográficos, Vangelis e seus engenheiros de som seguiam um espontâneo método de trabalho, o qual eles tentavam preservar através do longo processo de adição e sobreposição da gravação ao filme. Sem a tecnologia MIDI (Musical Instrument Digital Interface) disponível no momento, contando apenas com primitivos equipamentos chamados “sequênciadores” (sequencers), a maior parte da música foi criada através de sobreposição (over-dubbing), onde todo instrumento tinha de ser tocado e gravado individualmente. Mesmo algumas das linhas musicais simples foram, de fato, construídas a partir de muitas partes em unissonância, no sentido de criar a cor tonal certa. O engenheiro Keith Spencer-Allen observou a técnica de Vangelis quando ele gravou suas trilhas sonoras “artesanais”. “(…) Vangelis assistia às partes do filme que haviam sido assinaladas para música. Após duas ou três corridas do filme, ele tinha o núcleo de uma ideia e, então, iniciávamos a gravação. Freqüentemente, isso consumia um par de tentativas para criar a seção musical completa.”

Algumas das principais razões por que a trilha de Blade Runner ainda parece contemporânea e original foram a escolha dos instrumentos usados e o modo como Vangelis combinou os sons acústicos e eletrônicos para produzir texturas sonoras evocativas, extremamente originais – por exemplo, a combinação de instrumentos de percussão orquestral e linhas completas onipresentes com sintetizadores escutadas no tema de abertura, tocadas no sintetizador Yamaha CS80. Ele forneceu a maior parte das linhas solo com sintetizador ouvidas na trilha musical, incluindo o som enérgico, parecido com o de uma gaita, apresentado em “Blade Runner Blues” e “Main Titles”. O Yamaha CS80 (abaixo) foi um dos primeiros sintetizadores polifônicos analógicos a estar disponível comercialmente, e pesava cerca de 95 kg!

Outros instrumentos usados por Vangelis incluíram o Roland VP330 Plus vocoder (usado para teclados de coro e cordas) e o raríssimo (e caro) Yamaha GS1, um teclado FM antigo semelhante a um piano de cauda em miniatura, o qual contribuiu para o som suntuoso de piano eletrônico ouvido no “Love Theme”. As unidades eletrônicas de efeito em estúdio também contribuíram grandemente para a intensidade e atmosfera da trilha sonora – por exemplo, a antiga unidade de mola reverberante MasterRoom instalada no Estúdio Nemo a qual, junto com o bumbo da bateria de Vangelis, produziram os sons estrondosos que abrem o filme, os quais servem efetivamente para introduzir o espectador no mundo de Los Angeles em 2019. Uma outra peça evocativamente atraente é “Memories Of Green”, a qual se destaca por seu som de piano melancólico. Isto foi conseguido colocando o som de um piano de cauda Steinway através de um pedal de guitarra Electroharmonix “Electric Mistress” – o tipo de técnica de gravação irreverente que teria sido evitada pela maioria dos produtores/engenheiros da época, mas a qual foi prontamente utilizada por Vangelis em sua busca por novos sons e texturas. Os ruídos eletrônicos também pertencentes a esta faixa vieram de um dos primeiros videogames lançados no mercado, um produto japonês chamado “Bambino UFO Master Blaster Station”!

A Trilha Sonora

A trilha sonora original de Blade Runner com gravações de Vangelis não foi lançada senão 12 anos após a estréia do filme (1994), trazendo muito interesse para a partitura. Isto levou a uma coleção de lançamentos relativos à trilha sonora – alguns legítimos, outros não, em diversos formatos – vinil, CD, SACD, digital. Abaixo, identificamos alguns deles:

New American Orchestra (1982) – Warner Bros. Records: Esta edição não contém nenhum material tocado por Vangelis. O álbum, lançado para acompanhar o lançamento do filme no cinema, contém faixas que foram transcritas do material original e executadas por músicos de estúdio. “Por que eles já não lançaram a trilha original?”, você pode perguntar. Algumas fontes falam de um conflito entre Ridley Scott e Vangelis em relação a material composto por terceiros na versão final do filme. Outros dizem que Vangelis estava tão atarefado que ele não teve tempo de compilar a trilha sonora e ficou de má vontade em abrir mão do controle contratual para o estúdio (dando a este a chance de completar a trilha sonora com as faixas originais). Em outras palavras, isto ainda é um mistério. Umas poucas pistas, entretanto, apontam para um não cooperativo Vangelis:

  • O estúdio estava obviamente ansioso para lançar algo ou ele não teria gasto dinheiro para recriar a trilha sonora;
  • O estúdio obviamente teria preferido lançar a trilha sonora original – muito menos caro do que a recriação;
  • O material estava certamente disponível na forma completa (o que dizer dos bootlegs?).

Logo, a única possibilidade que podemos imaginar para o estúdio “recriar” uma trilha sonora completa a partir do rascunho é porque eles estavam impedidos pela autoridade legal de lançar o original. De qualquer forma, quando o filme foi mal nas bilheterias, houve pouco incentivo para Vangelis completar uma trilha sonora original para um filme impopular. Este álbum é uma diversidade em termos de qualidade. Mesmo assim, temos que “tirar o chapéu” para as pessoas que transcreveram para o papel a música de Vangelis, pois elas prestaram muita atenção à estrutura musical das composições. Isto é particularmente importante considerando-se que, desde que Vangelis não lê e nem escreve música (!), quaisquer transcrições tiveram que ser criadas por ouvido. Onde elas falharam foi ao tentar recriar os sutis ruídos eletrônicos de fundo, os quais não possuem equivalente em uma orquestra de estúdio.

Off World Edition (1993) – Off World Music: Este álbum foi provavelmente o mais vendido após as trilhas sonoras oficiais de Blade Runner. Apenas duas mil cópias do CD original foram produzidas. Ele oferece uma boa parte gráfica e uma qualidade de som não uniforme. Algumas fontes dizem que as trilhas de áudio originais deste lançamento têm origem no material utilizado para criar o remix da Edição do Diretor, junto com uma gravação de vinil de outro compositor (“Harps of the Ancient Temples”, de Gail Laughton) e uma fonte desconhecida para “If I Didn’t Care” (não usada no cinema por motivos de direitos autorais). Quem quer que tenha tido acesso a essas preciosidades descuidou do nível de qualidade das faixas, pois em algumas – como “Main Titles and Prologue” – há alguma distorção audível em baixa freqüência. O livreto de capa que acompanha o CD contém muitas páginas de texto e fotografias sobre o filme e a trilha sonora. Consta no texto que a trilha sonora original não foi lançada por causa de um conflito entre Ridley Scott e Vangelis a respeito de material adicional composto por outros. Em 2001 a Off World lançou uma versão expandida deste álbum, com 2 CDs.

Lançamento Oficial (1994) – Atlantic/Warner Brothers: Finalmente o lançamento oficial das gravações de Vangelis, com uma fantástica qualidade sonora e preço acessível à época. Ele tem algumas particularidades. Há trechos de diálogo do filme intercalados com o score no início das faixas. As superposições de voz são um pouco distrativas e em todos os casos, exceto em “Tears in Rain”, não têm nada a ver com a localização da música no filme. Em relação às faixas deste álbum, há quatro delas que não aparecem em nenhuma parte do filme. A faixa “Rachel´s Song”, por exemplo, foi, segundo boatos, gravada para o filme, porém nunca utilizada. Uma prova disso é que Mary Hopkin, a vocalista da música e que ficou famosa nos anos 1960 pela canção “Those Were the Days”, a tinha, de fato,  gravado em 1982. As outras faixas são obviamente novas músicas compostas especificamente para este lançamento.

Outros lançamentos: Ao longo dos anos, uma série de bootlegs da trilha sonora original de Blade Runner foi lançada e disponibilizada ao público em geral de muitas formas. A quantidade de cópias variava muito, desde 10 até cerca de 3.000. À época, pudemos perceber o fenômeno do “CD feito em casa para colecionadores”. Como resultado da nascente facilidade em se produzir áudio e material gráfico em um PC comum, alguns vendedores inescrupulosos do Ebay produziram suas próprias versões da trilha sonora para vendê-los a preços estratosféricos. Apesar do grande número de lançamentos relacionados à trilha sonora de Blade Runner, há, de fato, somente quatro fontes principais de material:

  • O CD oficial;
  • As faixas clandestinas usadas na versão OWM;
  • A versão “trilhas de áudio menos diálogo” usada em produções estrangeiras e que apareceu originalmente como a versão FIC Private Release (1990); e
  • Faixas de áudio tiradas diretamente do filme (com o score incompleto).

Em 2012, Edgar Rothermich regravou de forma fiel a trilha sonora de Blade Runner e a lançou num álbum comemorativo aos 30 anos do filme. A resenha dele você pode ler AQUI.

Emerson F. C. Paubel

3 comentários sobre “Na Trilha: A Música de BLADE RUNNER

  1. Muito bom texto. Gostei muito na descrição do contexto, “instrumentos” usados e apresentação de lançamentos. Sugestão: considerem escrever dobre BR 2049, o rompimento ali do Villeneuve com o Yohannsson, o provável início de longa parceria com o Hans Zimmer e como estariam relacionadas as carreiras do Zimmer e Vangelis.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Pingback: Sci Files: 1982 – Há três décadas, o Ano Fantástico de Hollywood – SCI FI do Brasil

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