Nas Trilhas da Nação Zombie – A Gente Prolifera!


George Romero

George Romero

O culto aos mortos vivos na cultura moderna pode ser um assunto tentador a antropólogos. O que nos filmes foi usado como uma crítica ou um alerta a massificação dos sentidos nivelados por um motivo comum agora é buscado consciente e voluntariamente pelo espectador, mesmo que só de brincadeirinha em eventos zombie walk ou cosplays. A necessidade de socialização é tão forte que qualquer justificativa é valida para sua satisfação. Mesmo que por vias alternativas. Várias leituras são possíveis.

George Romero ambientou seu Despertar dos Mortos em um shopping center para o qual os zumbis voltam instintivamente. Instinto associado a consumo coletivo. Em Terra dos Mortos os condomínios de luxo são o abrigo dos detentores do poder político e financeiro. Os policiais da SWAT, em Despertar dos Mortos (1978), entregam-se a um prazer catártico ao precisar fuzilar livremente as “pessoas” ao redor. E o espectador, por extensão, compartilha desse prazer. George Romero também: as sequências nas quais um bando de motoqueiros invadem o shopping center onde se passa a ação, roubam joias de madames-zumbis e disparam tortas-na-cara dos “habitantes do shopping” funcionam como o triunfo da geração drop-out contra uma sociedade fundamentada no poder financeiro e consumo desenfreado. Mais adiante, na refilmagem de A Noite dos Mortos Vivos (1991, com roteiro de Romero), a protagonista, ao ver os caçadores se deliciando com os fuzilamentos e maus tratos aos mortos vivos, conclui amargamente: “Eles são nós e nós somos eles”.

Os games digitais compreenderam imediatamente as implicações subjetivas da “cultura mortos vivos” proporcionando ao jogador a chance de ser o protagonista da ação. Disponibilizaram um arsenal bélico invejável e uma infinita legião de mortos vivos para serem abatidos. The House of the Dead, Doom3, Resident Evil, ZombiU e Left 4 Dead são grandes exemplos de uma proposta de diversão fundamentada em um conceito pré-intelectual: o prazer impune de fuzilar os semelhantes. Os games tiveram grande importância na revelação da mitologia living dead para uma geração que não a conheceu no cinema.

O pai de todos

Com o célebre A Noite dos Mortos Vivos (1968), George Romero fez história com um dos mais notáveis filmes B de todos os tempos. O filme utilizou como trilha sonora trechos de música de filmes de ficção e horror dos anos 50/60 que os estúdios guardavam justamente para esse fim: musicar outras produções e evitar gastos maiores. Nunca disponível oficialmente em CD, a trilha teve uma edição no velho e bom vinil em 1982 pela gravadora Varese Sarabande, selo dos mais representativos e pioneiros na valorização das trilhas de cinema.

Anos mais tarde, com as finanças mais encorpadas e administrando uma companhia de cinema própria, a Laurel, Romero investiu em uma sequência para A Noite dos Mortos Vivos. Em 1978 lançou Dawn of Dead (Despertar dos Mortos) que teve trilha sonora do grupo Goblin. Mesclando o peso dos instrumentos característicos do rock – com o baixo em destaque, como marca do som do grupo – acrescido de eletrônica, a trilha confirma a atmosfera sufocante do filme, ausente de alívio emocional, em temas exemplares (Alba Dei Morti Viventi, Zaratozom) que misturam marcação insistente de rock e solos de sintetizador.

No terceiro momento da série living dead, Day of Dead (Dia dos Mortos, 1985), a música já é totalmente eletrônica e ainda mais claustrofóbica do que no filme anterior. Composta por John Harrison, a trilha integrou o idioma techno dos anos 80, e foi além de apenas criar tensão com ritmo insistente. A claustrofobia sonora da longa suíte de abertura já pode ser facilmente citada como clássica no gênero. A trilha for recentemente editada em um CD duplo pelo selo La La Land Records.

E já que chegamos aos anos 80 não poderia faltar menção a dois grandes momentos living dead do período: Re-Animator e A Volta dos Mortos Vivos, ambos de 1985. Suas trilhas sonoras foram concebidas no melhor espírito picareta dos filme B/trash. A Volta dos Mortos Vivos tem pouco material original composto para a fita, e funciona como uma coletânea de temas punk/new wave. Já a trilha eletrônica de Richard Band para Re-Animator faz uma questionável “coleta” de ideias alheias (Psicose, A Profecia). Apesar da cara-de-pau é um trabalho divertido justamente pela despretensão e tem ótimas passagens em construção sintética como Dan Falls Into Cellar e Searching Hill`s Office. 

Euro zombies

Se você é fã die hard de filmes de zumbi ou está apenas de passagem não dá para ficar sem conhecer a produção europeia, principalmente a italiana. Living Dead at Manchester Morgue (1974) coprodução ítalo-espanhola dirigida por Jorge Grau só não é o primeiro grande filme de zumbis da história porque George Romero fez A Noite dos Mortos Vivos seis anos antes. Fãs do cinema dos anos 70 não podem deixar de conhecê-lo em toda a sua excelência fotográfica, cenográfica e sonora além das ousadias em explicitação gráfica. A trilha sonora desse filme é o cúmulo da ousadia vanguardista. Composta pelo italiano Giuliano Sorgini tem um tema principal (John Dalton Street) ao gosto da época: muito contrabaixo em um balanço soul – no início dos anos 70 não tinha muito como fugir da influência black, o que é ótimo! Mas o restante da trilha é uma sucessão de camadas de vozes em sussurros e instrumentos de sopro que são realmente apavorantes. Ocasionais órgãos e efeitos eletrônicos completam o clima espectral. A edição em CD da Beat Records traz também a trilha de outro grande momento do spaguetti horror, o filme Paura Nella Cittá Dei Morti Viventi (em VHS – Pavor na Cidade dos Zumbis, 1980) do idolatrado Lucio Fulci (mais ou menos o José Mojica italiano). A música de Fabio Frizzi é outra maravilha com sua abertura pinkfloydiana: andamento pesado, base de sintetizadores e solo de guitarra. Outras passagens lembram o Goblin em suas linhas circulares de baixo. Frizzi foi um devotado especialista no gênero tendo feito muitas trilhas de horror inclusive a de Zombie (ou Zombie 2), sequência não oficial de Dawn of Dead cujo sucesso desencadeou uma série de filmes no gênero. Outro momento de destaque da dupla (Fulci/Frizzi) foi L´Aldila (em VHS – Terror nas Trevas, 1981) mais um marco do cinema splatter nesse período e com uma trilha sonora que segue a receita eficiente de Paura Nella Cittá: claustrofobia em linhas musicais circulares e corais apocalípticos. 

Zumbis contemporâneos – A proliferação

Depois do sucesso dos games e de algumas refilmagens muito boas como Dawn of Dead (Madrugada dos Mortos, 2002) os filmes de mortos vivos proliferaram como uma autêntica epidemia de zumbis. A piada é inevitável e até certo ponto procedente, afinal o excesso de exposição, como uma praga, poderá levar a um apocalipse fílmico. O esgotamento final. O próprio George Romero deu sinais de estafa criativa em Diário dos Mortos (2007). E o gênero foi tomado por produções vindas de mercados atualmente menos competitivos ou menos atuantes. Dessa forma o irlandês Dead Meat (Banquete de Zumbis, 2004), o inglês 28 Days Later (Extermínio, 2002), o australiano Undead (2003), o espanhol REC (2007), o italiano Eaters (2010) ou o francês La Horde (2009) tentaram ingresso no mercado através de filmes de zumbis. E temos as variações duvidosas que conduzem ao real esgotamento como Warm Bodies (2012).

Os filmes baseados em games de sucesso como Resident Evil e House of The Dead também são sintoma dessa exposição em excesso, além da incontável quantidade de filmes que vão das produções profissionais, produções independentes, amadoras e até os fan films que circulam pela internet. O grande problema da mitologia cinematográfica dos mortos vivos é que a situação geral que sustenta os filmes é bastante simples e as possibilidades de roteiro praticamente foram esgotadas nos três filmes de zumbis de George Romero. Depois foi só “mais do mesmo” – com honrosas exceções.

Uma das saídas de roteiro foi disfarçar a situação básica em variações como nos epidêmicos REC (2007), Cabin Fever (2003) ou divertidas versões satíricas como Shawn of the Dead (Todo Mundo Quase Morto, 2004), Zombieland (2009) e Cockneys Vs Zombies (2012), além de incontáveis sequências e misturas de referências do gênero e dos subgêneros derivados, como os zumbis nazistas do norueguês Dead Snow (2009), subtema que já haviam servido aos esquecidos Shock Waves (1977) e Zombie Lake (1981). Day of Dead (Dia dos Mortos, 2008) pegou emprestado o título de Romero e desenvolveu uma aventura interessante, com alguns excessos (zumbis subindo pelas paredes!), mas com um resultado geral bacana, acima da média atual. Também tem a seu favor a trilha sonora de Tyler Bates que soa como música mesmo e não apenas como efeito climático.

Mas a epidemia continua e talvez tenha alcançado o máximo de sucesso popular ao invadir as telas residenciais com a série The Walking Dead. Alguns filmes são suficientemente inventivos como o citado Banquete dos Zumbis, dinâmico em suas referências ao cinema de Sam Raimi e Peter Jackson. George Romero tentou uma recuperação à velha forma com Survival of the Dead (A Ilha dos Mortos, 2009) no qual retornou à sua habitual produção de nível B, com elenco desconhecido e sem efeitos digitais. E no meio da proliferação saltam filmes muito legais como Stake Land (Anoitecer Violento, 2011) no qual o apocalipse não é de zumbis, e sim de vampiros, mas que integra a mitologia e a estética dos living deads muito de perto. Stake Land tem ainda uma respeitável trilha sonora de Jeff Grace disponível no mercado pelo selo Movie Score Midia, especializado em trilhas contemporâneas.

E as trilhas sonoras? Em meio a apelação escatológica, excessos adrenalínicos, sustos baratos e histeria constante, as trilhas sonoras quase perderam sua função de produzir envolvimento no sentido musical. A maioria é eficiente, mas poucas são memoráveis e quase todas se confundem com o sound design das películas. Destaque para o ótimo trabalho de John Murphy na música de 28 Days Later. Uma grande colagem sonora de vozes, ruídos e de gêneros musicais incluindo texturas eletrônicas climáticas, rock, a Ave Maria de Gounod, trechos clássicos – o coral In Paradisum de Gabriel Faurè – e até peças de outras trilhas sonoras como a faixa An Ending, de Brian Eno, da trilha do documentário Apollo (1983). Como conjunto, é fragmentado e dispersivo, mas seus bons momentos atmosféricos como The Search For Jim, Red Dresses e o rock instrumental de Rage, destacam o compositor como um dos mais interessantes da atualidade. Além isso, In the House é uma construção sonora crescente que praticamente se tornou um clássico contemporâneo no gênero. Um modelo sonoro “aproveitado” em diversas outras produções e trailers.

Cabin Fever (ok, não é zumbi, mas é contaminação) tem um curioso roteiro, aparentemente cômico, mas que recebeu direção dramática, e teve uma trilha muito boa de Nathan Barr e do sempre eficiente Angelo Badalamenti, compositor habituado ao cinema fantástico – frequente parceiro nos filmes de David Lynch. Cabin Fever se divide entre criativos momentos climáticos com música processada por vias digitais (Barr) e outros mais tradicionalmente melódicos (Badalamenti). As faixas eletrônicas, além das óbvias texturas sintetizadas, simulam instrumentos de cordas em uma curiosa e criativa soma de referências. Mas Badalamenti sai-se melhor com seu habitual domínio em ambientação sonora, ao mesmo tempo romântico e fúnebre em Paul and Karen e Red Love. O clima de jazz em Deputy Winston lembra muito suas trilhas para David Lynch (p.ex. Twin Peaks).

Já o satírico Undead brinca com um pouco de tudo: o espírito dos filmes dos anos 50, invasão alienígena, a explicitação violenta dos filmes de zumbis, o humor anárquico de Peter Jackson e, para completar o pacote de referências pop, citação de western na figura do fazendeiro Marion (referência a John Wayne? Marion Michael Morrison?). A música de Cliff Bradley é um show à parte. Com o mérito principal de contar com um grupo de músicos de verdade em plena era digital, a música insere-se na narrativa sem ostentação, sem excesso e com humor. Bradley cita sem disfarce o tema musical dos turistas de Tubarão (Promenade), e até mesmo o rock Little Green Men é do compositor, contrariando a moda de usar temas alheios para a composição de uma trilha sonora com apelo de vendas no mercado de CDs. Cabin Fever e Undead estão disponíveis pelo selo La La Land Records.

Discografia Zumbi

Guilherme de Martino

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